
O segredo, segundo ele, é “fazer todas as vontades do cliente” – revela. Por ter clientes fixos, a forma de pagamento fica a critério de cada um. “Alguns pagam por semana, uns a cada quinze dias e outros a cada mês”, informa. Garante que recebe tudo certinho. “É como uma assinatura: eles recebem em casa. É habito deles a leitura do jornal. Já quem compra na rua não é sempre”, reflete.
Pela experiência, ele sabe que o melhor que faz é ir até a casa de cada um de seus fregueses. E essa é a sua prioridade. Ficar parado em uma esquina não dá muito resultado, as vendas são bem menores. Por isso, não tem ponto certo.
São raras as vezes em que vende poucos jornais. “Às vezes até falta”, afirma. Quando para em frente ao Banco do Brasil, conta com a companhia de alguns amigos que ficam por ali. Um deles é Clóvis Züge, vendedor de frutas, que também faz daquele o seu ponto de vendas.
Vieira mora sozinho há 15 anos, em uma casa no bairro Itacherê, aos fundos da residência da mãe e do irmão. Tem uma filha, Saniele, que mora em Porto Alegre com a ex-mulher. Há dois anos conheceu a namorada, Jussara. “Em um baile”, conta, faceiro. Confessa que adora dançar e ir a bailes gaúchos – ocasiões em que se veste a caráter.
A calma no conversar é uma característica dele. Talvez uma grande aliada no sucesso de suas vendas. Assim é Vieira, o homem que, à primeira vista pode parecer sisudo, mas que logo deixa transparecer sua figura humana e dedicada.
HISTÓRIAS DE JORNALEIROS

Vendedores de notícias
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Eles acordam cedo, conciliam tarefas e estão quase sempre nos mesmos lugares. Personagens tão importantes para o acesso à informação, e que muitas vezes passam despercebidos aos olhos da sociedade, ganham voz para contar um pouco de suas vidas profissionais e pessoais.



Pureza e tranquilidade no olhar

Sidnei Luis Bohn, 33 anos
Quem vê pela primeira vez aquele homem de mãos calejadas e firmes, segurando ao alto um punhado de jornais e passeando em meio aos carros parados no semáforo da Praça XV, nem imagina o tamanho do carisma que há por trás daquele rosto sério. Tal semblante se desfaz com o primeiro contato.
“- Estou fazendo um trabalho que envolve a história de vendedores de jornais. O senhor poderia conceder uma entrevista?” – pergunto.
“- Sim, claro!” – ele responde.
Sua resposta tira-me uma grande tensão. Já havia cruzado duas vezes pelo mesmo local e a aparente cara de bravo continuava do mesmo jeito. Estava com receio da abordagem. Ao contrário do imaginado, Sidnei Luis Bohn nem se intimida com os cliques, e então
nossa entrevista logo flui. Aos 33 anos, é esposo da Vanusa (27) e pai da Ana Clara (7). Define-se como “pedreiro”, sua principal atividade. Aos sábados trabalha como vendedor de jornais para complementar a renda da família. Há 7 meses, o descendente de alemães de olhos verdes recatados, ergue o braço direito e desfila, passando ao lado de cada motorista, vendendo notícias e distribuindo simplicidade.
Às 14h daquele mesmo sábado, desloco-me até uma das pontas da cidade, para conhecer sua morada. A família ne recebe com enorme prazer. Residentes há oito anos em uma aconchegante casinha do bairro Pró-Morar, Sidnei e Vanusa estão juntos há nove. Enquanto a filha brinca e a esposa termina a limpeza da casa, ele acaba de almoçar, pois chegara das vendas minutos antes.
Assim que passo pelo portão, Vanusa desfere: “Ah, é você!”. Apesar de não lembrar de onde a conhecia, aquele rosto não me era estranho. Sentamo-nos nos sofás da sala. As paredes são decoradas com lindas fotos de “books” da pequena Ana Clara, que Vanusa faz questão de registrar a cada ano completado. Desperta atenção também o piso da área externa, feito com lajotas que sobram das obras em que Sidnei trabalha. São caprichosamente colocadas por ele quando está de folga.
Coloco o celular para gravar. À minha frente, Sidnei pronto para falar e Vanusa e Ana Clara abraçadas, atentas a cada palavra. O jornaleiro conta que o início foi ideia própria. “Depois que eu vi algumas pessoas vendendo, pensei que também poderia fazer o mesmo. Foi um pouco difícil, como eu era novo no ramo, o pessoal não me conhecia e comprava pouco”, comenta.
Considera que teve sorte em conseguir aquele ponto, junto à Praça XV, considerado um dos melhores. Quando começou não havia nenhum outro vendedor naquele local. Sidnei explica que ele e a esposa vendiam juntos, cada um ficava em uma das esquinas.
“- Que coincidência!” – interrompo. “Há alguns meses tirei fotos da sua esposa para o mesmo trabalho”.
Até que enfim aquele rosto fazia sentido.
Há 8 anos, Sérgio Soares Vieira trabalha com venda de jornais. Durante três dias na semana (quarta, sexta e sábado), acorda cedo, busca os jornais e os entrega nas casas de seus clientes, de bicicleta ou de moto.
Começa às 6h e faz as últimas entregas em torno das 17h. O dia em que mais vende é aos sábados, cerca de 270 exemplares. “Nos outros dias sai em torno de 50 e 70 unidades”, conta.
Diz que quando decidiu que iria trabalhar com venda de jornais, alguns amigos até o questionaram sobre isso. Achavam que não daria certo, que não era algo que desse bom lucro. Mas ele insistiu e hoje considera que vale a pena. Aos poucos foi aumentando suas vendas e conquistando cada vez mais clientela.
Sergio Soares Vieira, 57 anos
![]() "Exposição de jornais" | ![]() |
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![]() "Companhia fiel" | ![]() "Venda realizada" |
![]() | ![]() "olhar apurado" |
![]() "Animais de estimação" |
Dona Maria reside há 13 anos em uma pequena casa no bairro Pró-morar. Com ela e o esposo Luiz moram dois de seus seis filhos – Mirian e Jackson –, e o neto Everson, que cuida como filho. Com eles também residem 8 gatos, 2 cães e algumas galinhas.
Acorda todos os dias às 5h, para às 7h estar na casa em que atua como empregada doméstica. Nas quartas, sextas e sábados, começa cedinho a vender jornais, pois às 7h já é hora de assumir no emprego. A partir desse horário quem fica com os exemplares é o esposo, que trabalha em uma padaria e, após o expediente, a substitui no ponto de venda.
A decisão pelo casal conciliar atividades profissionais foi tomada em 2003. “A ideia foi de um dos filhos, que vendia jornais e decidiu se mudar de cidade”, conta Maria. “Deixou quarenta clientes certos. Com o tempo, o número foi aumentando e, sempre que uma notícia impactante sai no jornal, as vendas dobram”, comemora.
Já chegaram a vender 350 exemplares de uma só edição. Porém, da mesma forma que a procura pode aumentar, também pode cair, segundo Maria. Mesmo assim, ela garante que sempre volta para casa satisfeita. “O dia que vende menos dá em torno de 100 unidades. É raro, mas quando sobra algum jornal, levo pra casa e vendo todos na vizinhança”, acrescenta.
Maria já é figura conhecida pelos que passam na esquina do outro lado da rua do posto de combustíveis BR Centro, na Rua Eurico Batista da Silva. É só parar um carro, buzinar ou fazer sinal, que ela vai correndo com o jornal na mão entregar para o cliente, sempre com um sorriso no rosto, sua principal característica.
Como o ponto de venda, além de próximo ao posto de gasolina, é junto a uma padaria, Maria tem uma vantagem: clientes de ambos os estabelecimentos. “Muitos saem da padaria e compram jornal”, conta.
Maria Aparecida Lopes Neto, 47 anos
Está sempre de um lado a outro, movimentando-se. Em casa, faz questão de ensinar aos filhos os afazeres domésticos. “Se eu não estou por perto, eles precisam ‘se virar’”, considera. O almoço é feito pelo esposo ou pelo filho, Jackson. Mirian ela também está ensinando a cozinhar.
Maria, dinâmica, otimista, é feliz com essa rotina. Difícil não se deixar conquistar por seu jeito simpático. Quando lhe perguntam sobre o conteúdo da edição, responde: “está muito boa” ou “hoje está especial, quer dar uma olhada?”, e assim vai conquistando seus novos amigos, novos clientes.
Carlos Alberto Etgeton, 60 anos
No final da Rua General Osório, no bairro do Tiro, zona leste da cidade, é difícil não perceber uma figura pitoresca que por ali mora. Um homem de cabelo baixo e barba branca, que tem por hábito sentar defronte à residência, uma pequena casa rosa com verde, geralmente na companhia de seu fiel cão. É lá, diante da morada de quatro cômodos, que Carlos Alberto Etgeton passa a maior parte do dia. O som dos carros e das máquinas da serralheria que fica do outro lado da rua lhe chega retumbante. O movimento da empresa de sucata que fica ao lado é por ele percebido em detalhes. Cenários sonoros que o distraem e o fazem, por vezes, nem notar a passagem do tempo.
Naquele lugar fui acolhido com um grande sorriso e um forte aperto de mão. Apresento-me e sou convidado a adentrar a casa. Na minha frente está um homem simples, alegre e receptivo.
Sentamos-nos em um sofá vermelho, na sala de piso claro, da casa em que reside há 40 anos. Logo, iniciamos nossa conversa. Ao avistar na parede um quadro com uma oração, pergunto se segue alguma religião. Do quarto que fica ao lado, uma voz feminina assegura: “somos evangélicos, mas sou eu quem mais vou à igreja”. A voz era de Belma, sua dedicada companheira.
Enquanto tiro algumas fotos, ele vai contando um pouco de si. É natural de Santo Ângelo, e veio para São Borja com a família aos 14 anos de idade. Perto de completar 61, afirma, faceiro: “sou um moço jovem ainda!”. E é isso mesmo que ele evidencia. A alegria estampada em seu rosto lhe confere um aspecto jovial.
Há algum tempo, aprendeu a traçar sua história de uma maneira diferente. Ainda que não consiga ver a cor do dia, nem o rosto das pessoas, consegue transmitir confiança e dar muita atenção a quem conhece. É um homem de bem com a vida.
Por causa de um problema vindo da infância, Carlos Alberto não pode mais enxergar. Explica que desde criança sofria com a baixa visão, mas que distinguia tudo ao seu redor, apesar da dificuldade. Por consequência de um glaucoma foi perdendo a visão aos poucos. A cegueira o atingiu de vez há 12 anos.
Carlos conta que há muito já convivia com essa hipótese. O médico havia lhe adiantado que em algum momento esse dia chegaria. “Não tinha o que fazer. Só ir tratando à base de colírios. Naquela época não existia cura pra isso, hoje em dia já tem”, comenta, baixando a cabeça, conformado.
Antes de perder completamente a visão, trabalhava com fabricação de baterias automobilísticas. Foram quase três décadas na atividade. Mas depois, sentiu que precisava fazer alguma coisa que pudesse lhe ocupar de alguma maneira. Temia que acabasse se sentindo inútil e, com medo da depressão, decidiu procurar uma oportunidade. Entrou em contato com os proprietários dos jornais locais. Não demorou para assumir seu novo ofício. Virou jornaleiro.
As vendas ele promove ali mesmo, em sua residência. Fregueses cativos o estimulam a prosseguir no trabalho. Considera que o mais importante não é a pressa e nem o lucro, mas o fazer em si.
Às quartas- feiras e aos sábados recebe em sua casa, cedinho da manhã, os exemplares da Folha de São Borja que vai colocar à venda. Confessa não ter por hábito acordar cedo, apenas nos dias em que recebe os exemplares, em torno de 5h30min. “Às vezes me atraso um pouco, principalmente em dias frios”, admite, entre risos francos.
Para que os pedestres saibam que ele vende jornal, Carlos Alberto coloca sempre um exemplar pendurado no portão. Relata, bem humorado com sua condição, que certo dia prendeu o jornal e se sentou na frente da casa, como de costume; uma vizinha, ao passar por ali, o avisou: “Seu Carlos, o jornal está de cabeça pra baixo!”. A intenção do jornal no portão é chamar a atenção da clientela,como de fato chamou.
Recordar passagens é algo que o jornaleiro faz com uma alegria ímpar. Com ele não há tempo ruim. Embora não possa mais discernir com os olhos, carrega na memória imagens do que um dia pode visualizar.
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Devido aos muitos obstáculos encontrados pelas ruas são-borjenses, carentes de caminhos adaptados, Carlos não sai muito. “Só às vezes, com minha companheira, para almoçar fora aos finais de semana. Ou para pagar as contas, o que não é uma atividade das mais prazerosas”, conta, mantendo o astral.
Em casa, escuta o noticiário da TV e ouve rádio. Recebe algumas correspondências em Braille, mas conta que não aprendeu a ler nesse sistema, que nunca encontrou alguém
que o pudesse ensinar. Quando quer saber de algo que necessita de leitura, conta com Belma, que faz de tudo para lhe orientar. Oito anos juntos. É ela quem lê os jornais em voz alta, porque além de vender, Carlos faz questão de estar bem informado.
Pergunto qual o segredo de sua contagiante alegria. Ao que ele responde: “Viver cada dia como se fosse o último. Viver, unicamente”. Após conhecer de perto Carlos Alberto, uma das frases do livro O pequeno príncipe, “O essencial é invisível aos olhos, só se pode ver bem com o coração”, passou a fazer muito mais sentido. Carlos demonstra nitidamente o fato de que não é necessário apenas enxergar a aparência que os olhos podem ver. É preciso sentir, com a alma e com o coração. A chave é experimentar, e principalmente, levantar a cabeça perante os desafios impostos pela vida.

O jornal e um sorriso de amostra

Sérgio e o amigo Clóvis dcompartilham um mesmo espaço

Atenção com o cliente é essencial

Pausa para um bate-papo

"Um minutinho" para a entrevista

Serenidade transmitida pelo semblante tímido
Também se utiliza de outra estratégia para chamar a atenção de quem passa por ali: é a exposição de jornais que ela monta. Estende os exemplares em uma grade que fica bem na volta da esquina. “As pessoas podem passar e dar uma ‘espiadinha’ no que tem no jornal”, explica. Enquanto conversávamos, Maria deixava escapar sinais de sono. “É pelo hábito de não sentar!”, justifica.